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“O STF e o futuro dos direitos trabalhistas”, por José Geraldo de Santana

Por José Geraldo de Santana Oliveira*

“É:- Eu sei e não sei.. Que é que o boi diz:- Me ensina o que eu sabia..”(ROSA, 2019, p. 289).

A emblemática metáfora da epígrafe, uma das centenas utilizadas por Riobaldo – personagem central do livro Grande Sertão: Veredas-, em seu diálogo imaginário com o compadre Quelemém, ao refletir sobre a experiência e o conhecimento adquirido pela vivência; bem serve para resumir em uma palavra a palestra do ministro Roberto Barroso, proferida na abertura do seminário “O Trabalho na Era das Transições”, promovido pelo Grupo de Estudos de Direito do Trabalho (Getrab-USP), no dia 15 de agosto corrente, na Faculdade de Direito da USP, em São Paulo.

Em outras palavras: o ministro, na referida palestra, disse o que já vem dizendo, em suas declarações avulsas e, principalmente, em seus votos, desde o julgamento do recurso extraordinário (RE) 958252 e arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) 324, em 2018 e repetido em múltiplas dezenas de outras decisões a respeito da pejotização. Em umas e outras, não mede esforço retórico- o que ele possui em abundância-, para ungir a livre iniciativa e profanar os valores sociais do trabalho; fazendo-o em rota de colisão com o Art. 1º, IV, da Constituição Federal (CF), que põe ambos em absoluto pé de igualdade.

Essa consciente e deliberada dicotomia do ministro e da quase totalidade dos demais, sem dúvida, traz à baila o atemporal poema de Brecht, A PARADA DO VELHO NOVO:

“Eu estava sobre uma colina e vi o Velho se aproximando, mas ele vinha como se fosse o Novo.

[..]

Assim marchou o Velho, travestido de Novo, mas em cortejo triunfal levava consigo o Novo e o exibia como Velho.

[..[ E o grito: Aí vem o Novo, tudo é novo, saúdem o Novo, sejam novos como nós”.

Confirmando a ironia do escritor irlandês Oscar Wild, para quem a vida imita muito mais a arte do que é por ela imitada, o ministro Roberto Barroso e a maioria dos demais dez ministros do STF, nada mais fazem do que repetir o grito de “novo chegou”, o “empreendedorismo chegou”, “vivas ao novo”, “sejam novos como nós”.

Desafortunadamente, para eles, o “novo” é o mundo do trabalho sem direitos, para os trabalhadores. Parafraseando o brado do ministro Flávio Dino, na sessão de julgamento durante o julgamento da RCL 67348, sobre os riscos à proteção social e trabalhista – conforme matéria publicada no portal Migalhas, de 22/10/2024: -(…) Acho que nós tínhamos que revisitar o tema, não para rever a jurisprudência, mas para delimitar até onde ela vai, porque hoje nós vamos virar uma nação de pejotizados”-, é forçoso dizer que, para o STF, o “novo” é a nação de pejotizados. Importa dizer: nação sem direitos trabalhistas.

Para o ministro Roberto Barroso, esse é o “novo mercado de trabalho”, sem “rigidez, muitas vezes, da própria Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT)”; “nós temos um mundo novo em que há um mercado de trabalho que não é mais o metalúrgico”.

Apesar de o ministro Roberto Barroso, pressionado pela manifestação que teve lugar à abertura de sua palestra,  com gritos de “não à pejotização, não à precarização”, com sua costumeira elegância, afirmar que  “ninguém tem o monopólio da verdade ou da virtude. A vida é feita de diálogo”; não é o que se colhe da pletora de decisões do STF, sobre pejotização, como se constata pela simples leitura dos temas 725 e 383:

“Tema 725: É lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante.”

Tema 383: Tese firmada: A equiparação de remuneração entre empregados da empresa tomadora de serviços integrante da administração pública e empregados da empresa contratada (terceirizada) fere o princípio da livre iniciativa, por se tratar de agentes econômicos distintos, que não podem estar sujeitos a decisões empresariais que não são suas”.

A Ementa do Acórdão, proferido no RE 635546, que firmou a tese vinculante do Tema 383, dá a exata dimensão do que o STF entende como “novo” no mundo do trabalho: “

“Ementa: DIREITO CONSTITUCIONAL E DO TRABALHO. TERCEIRIZAÇÃO DE ATIVIDADE -FIM. EQUIPARAÇÃO REMUNERATÓRIA. DESCABIMENTO.

  1. Recurso extraordinário em que se debate se o empregado de empresa contratada teria direito à equiparação remuneratória com o empregado da empresa tomadora do serviço, quando ambos atuarem na mesma atividade-fim.
  1. Conforme decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal nos autos da ADPF 324, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, a terceirização das atividades-meio ou das atividades-fim de uma empresa tem amparo nos princípios constitucionais da livre iniciativa e da livre concorrência, que asseguram aos agentes econômicos a liberdade de decidir como estruturarão seu negócio (art. 170, caput e inc. IV, CF).
  1. Do mesmo modo, a decisão sobre quanto pagar ao empregado é tomada por cada empresa, de acordo com suas capacidades econômicas, e protegida pelos mesmos princípios constitucionais. Portanto, não se pode sujeitar a contratada à decisão da tomadora e vice-versa.
  1. Além disso, a exigência de equiparação, por via transversa, inviabiliza a terceirização para fins de redução de custos, esvaziando o instituto.
  1. Recurso provido. tese: “A equiparação de remuneração entre empregados da empresa tomadora de serviços e empregados da empresa contratada (terceirizada) fere o princípio da livre iniciativa, por se tratar de agentes econômicos distintos, que não podem estar sujeitos a decisões empresariais que não são suas”.

Mais um exemplo elucidativo do conceito de “novo mercado de trabalho”, para o STF,  patenteia-se na ADI 5994, que julgou constitucional o Art. 59-A da CLT, que autoriza jornada de 12×36 horas, por acordo individual, sem intervalo para repouso e alimentação.

Nessa ADI, o STF declarou seu profundo desprezo pelos trabalhadores, ao dizer que deles pode ser exigido trabalho por 12 horas consecutivas, sem qualquer descanso ou alimentação. A rigor, para o STF, os trabalhadores não são sujeitos de direito.

Essas decisões, às quais se somam muitas outras com igual teor, infirmam a assertiva do ministro Roberto Barroso, de que é preciso acertar o ponto de equilíbrio, com a decisão a ser proferida no Tema 1389, que seja “boa para todo mundo, não só para alguns”. “Então, é preciso saber qual é o ponto de equilíbrio no qual você não mate a atividade econômica, e no qual você proteja o trabalhador”.

Um pequeno recorte histórico, tomando-se o julgamento do RE 590415, em 2015, é bastante para demonstrar que o ministro Roberto Barroso, tal como fizera o ex-presidente Fernando Henrique, que pediu para que se esquecesse o que ele tinha escrito, antes de ser presidente, também quer apagar o que dissera no seu voto vencedor, proferido no referido processo:

“ II. LIMITAÇÃO DA AUTONOMIA DA VONTADE DO EMPREGADO EM RAZÃO DA ASSIMETRIA DE PODER ENTRE OS SUJEITOS DA RELAÇÃO INDIVIDUAL DE TRABALHO 8. O direito individual do trabalho tem na relação de trabalho, estabelecida entre o empregador e a pessoa física do empregado, o elemento básico a partir do qual constrói os institutos e regras de interpretação. Justamente porque se reconhece, no âmbito das relações individuais, a desigualdade econômica e de poder entre as partes, as normas que regem tais relações são voltadas à tutela do trabalhador. Entende-se que a situação de inferioridade do empregado compromete o livre exercício da autonomia individual da vontade e que, nesse contexto, regras de origem heterônoma – produzidas pelo Estado – desempenham um papel primordial de defesa da parte hipossuficiente. Também por isso a aplicação do direito rege-se pelo princípio da proteção, optando-se pela norma mais favorável ao trabalhador na interpretação e na solução de antinomias.

  1. Essa lógica protetiva está presente na Constituição, que consagrou um grande número de dispositivos à garantia de direitos trabalhistas no âmbito das relações individuais. Essa mesma lógica encontra-se presente no art. 477, §2º, da CLT e na Súmula 330 do TST, quando se determina que a quitação tem eficácia liberatória exclusivamente quanto às parcelas consignadas no recibo, independentemente de ter sido concedida em termos mais amplos.
  1. Não se espera que o empregado, no momento da rescisão de seu contrato, tenha condições de avaliar se as parcelas e valores indicados no termo de rescisão correspondem efetivamente a todas as verbas a que faria jus. Considera-se que a condição de subordinação, a desinformação ou a necessidade podem levá-lo a agir em prejuízo próprio. Por isso, a quitação, no âmbito das relações individuais, produz efeitos limitados. Entretanto, tal assimetria entre empregador e empregados não se coloca – ao menos não com a mesma força – nas relações coletivas”.

O item 3 da Ementa do Acórdão assevera: “ [..[ 3. No âmbito do direito coletivo do trabalho não se verifica a mesma situação de assimetria de poder presente nas relações individuais de trabalho. Como consequência, a autonomia coletiva da vontade não se encontra sujeita aos mesmos limites que a autonomia individual  [..]”.

Aqui, apresenta-se como inevitável e inadiável o seguinte questionamento, para o qual o ministro Roberto Barroso não tem resposta razoável: que revolução, silenciosa ou rumorosa, irrompeu-se no país, nos dez anos que medeiam entre o julgamento do RE 590415 e o de agora, capaz de, como num passe de mágica, fazer desaparecer a assimetria registrada no judicioso voto  da lavra dele, com o referendo da maioria dos demais ministros; fazendo-o de modo a garantir que o trabalhador possa sentar-se à mesa de negociação com o empregador, quer no ato da contratação, quer no curso da contrato ou em sua rescisão, em igualdade de condições para negociar?

No horizonte transparente da sociedade brasileira, não só não se irrompeu revolução alguma desse jaez, como, ao reverso, acentuou-se a destacada assimetria, sobretudo a partir do advento das leis N. 13429/2017 e 13467/2017. Afirmar o contrário é como acreditar em sonho de noite de verão, parafraseando a multissecular peça de Shakespeare (1564-1616), sem eco algum na realidade concreta.

Ademais, pelo providencial silêncio do ministro Roberto Barroso, quanto às garantias asseguradas pelo Art. 7º, da CF, somado às decisões tomadas em processos que tratam de pejotização, parece não deixar dúvidas de que, para o STF, tais garantias não se enquadram no que o ministro chama de “novo mercado de trabalho”.

Esse comando constitucional assim dispõe: “Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: “.

Ainda que remanescesse alguma dúvida sobre o alcance do caput, que estende os direitos que elenca a todos os trabalhadores urbanos e rurais e não apenas aos empregados, o inciso XXXIV do comentado Art., cuida de afastar toda e qualquer afirmação diversa, ao estabelecer, de forma indelével, “XXXIV – igualdade de direitos entre o trabalhador com vínculo empregatício permanente e o trabalhador avulso”.

Assim, a juízo do mundo do trabalho, resta claro como a luz solar que os intitulados pejotas devem gozar de todos os direitos sociais elencados pelo Art. 7º da CF.

Como bem assenta o Subprocurador Geral do Trabalho, Cristiano Paixão, no Parecer ao TST, IRDR 373-67.2017.5.17.0121, pejotização é fraude:

“Entendemos que a pejotização é uma fraude à relação de emprego. Trata-se da contratação de trabalhador subordinado como sócio ou titular de pessoa jurídica, como forma de mascarar o vínculo empregatício a partir da celebração de um contrato de trabalho autônomo do ponto de vista formal.

[..]

        O contrato de prestação de serviços a terceiros, para estar em conformidade com a legislação, exige, como já mencionado, três elementos: a) a transferência de execução de atividades à empresa prestadora, como objeto contratual; b) empresa prestadora de serviços e a sua autonomia na execução da atividade, nos limites do contrato de prestação de serviço; e c) a capacidade econômica compatível com a execução. Nenhum desses requisitos está presente na “pejotização”.

Não há transferência da atividade, pois o trabalhador é contratado para a prestação de serviços pessoais e subordinado (o que inclui o previsto no § único do art. 6º da CLT) à contratante, sendo inserido no processo produtivo dessa. Não estamos diante de uma situação em que a contratante pretende transferir a execução de um serviço, mas contratar força de trabalho’.

Nos termos do Art. 18-E da Lei complementar N. 147/2014, o instituto do MEI (microempreendedor individual), constitui-se em “..uma política pública que tem por objetivo a formalização de pequenos empreendimentos e a inclusão social e previdenciária”.

Porém, quando se fala de pejotização, tem-se como referência o MEI, que, como atestam à larga os indicadores sociais da Pnad contínua, é utilizado, em sua quase totalidade, indevida e ilegalmente, como substituto do registro na CTPS, para isentar a empresa que o contrata de todos os direitos sociais enumerados no Art. 7º da CF e na CLT. Importa dizer: o objetivo do MEI foi completamente subvertido, pois que passou a representar meio utilizado à larga, para exclusão de direitos.

Esse, parece ser o “novo mercado de trabalho”, a que alude o ministro Roberto Barroso.

Segundo dados do Sebrae, divulgados pelo Portal Brasil 61, em 15 de junho último, em 2025, do total de 23.452.457 empresas ativas, nada menos que 12.017.846 são MEIs; assim distribuídos Sudeste, 6.594.072; Sul, 2.369.192; Nordeste, 2.071.798; Centro-Oeste, 1.113.089; e Norte, 564.899 MEIs. Somente no ano de 2025, já foram registrados 1.792.342 novos.

Como bem pontuou o ministro do trabalho Luís Marinho, em reunião com os representantes da Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais (Contar), ao 12 de agosto corrente: “A pejotização é ainda mais grave que a terceirização, pois prejudica não apenas os trabalhadores diretamente, mas todo o país, ao fragilizar o sistema de proteção social”.

No Tema 1046, o STF autoriza CCT e ACT sem nenhuma contrapartida para os trabalhadores. Ou seja, que só reduzam ou suprimam direitos.

“São constitucionais os acordos e as convenções coletivas que, ao considerarem a adequação setorial negociada, pactuam limitações ou afastamentos de direitos trabalhistas, independentemente da explicitação especificada de vantagens compensatórias, desde que respeitados os direitos absolutamente indisponíveis”.

Esse tema, além de caminhar em sentido contrário ao que dispõe o Art. 7º, caput e inciso XXVI, da CF, que autoriza a prevalência do negociado sobre o legislado, quando visar à ampliação de direitos, encerra uma assertiva, que prontamente se antagoniza com a pregação do ministro Roberto Barroso, pois que desautoriza a negociação in pejus (em prejuízo) de direitos absolutamente indisponíveis. Mas, de acordo com as afirmações do referenciado ministro, no “novo mercado de trabalho”, não há sequer direitos. Ou seja, em sua ótica, a garantia do nefasto Tema é totalmente vazia, pois que não há de se falar em direitos indisponíveis, onde não há direitos.

É fato que o ministro Barroso, serena e respeitosamente, como é de seu costumeiro feitio, ouviu alguns dos trabalhadores, participantes do grupo que protestou contra a pejotização. Resta saber se, para além disso, dispõe-se a escutar suas angústias e seus pleitos. Tomara que sim. Muito embora o ato de escutar não seja marca da atuação do STF.

Por derradeiro, fica a pergunta sobre o que efetivamente o ministro Roberto Barroso pretendeu dizer, com sua enigmática assertiva, segundo a qual a “palavra-chave do futuro para o Direito do Trabalho é Darwin”. Ao que tudo indica, é prenúncio de que os mais fracos vão sucumbir, tal como na seleção das espécies de Darwin; não importando o custo social.

*José Geraldo de Santana Oliveira é consultor jurídico da Contee.

 Fonte: Contee.

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