Pela primeira vez na história, o Brasil ultrapassou a marca de 10 milhões de estudantes matriculados no ensino superior. A marca consolida uma tendência de expansão, mas abre também um debate profundo sobre quem tem acesso, em quais condições e com que qualidade.
Segundo o Censo da Educação Superior 2024, divulgado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), o crescimento foi impulsionado principalmente pela educação a distância (EaD), que hoje concentra 50,7% das matrículas de graduação — um aumento de 5,6% em relação a 2023.
A modalidade permitiu que milhões de brasileiros, especialmente de regiões interioranas e de baixa renda, precisassem de acesso a uma formação superior que, em outra realidade, seria inalcançável. “A EaD proporcionou a ampliação da oferta e atendeu estudantes que, de outra forma, não teriam acesso”, afirmou o presidente do Inep, Manuel Palacios.
Democratização com sombras: qualidade em xeque
Apesar do avanço quantitativo, especialistas alertam que o crescimento acelerado da EaD sem um marco regulatório robusto exige a qualidade da formação. A preocupação é ainda mais relevante diante do fato de que 88,5% dos novos ingressantes em 2024 entraram em instituições privadas, muitas delas vinculadas a grandes grupos educacionais de capital aberto, historicamente resistentes à regulação mais rígida.
O Portal Vermelho entrevistou Madalena Guasco Peixoto, diretora da Faculdade de Educação da PUC-SP e secretária-geral da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (Contee), para analisar os dados. A educadora apontou preocupações com questões qualitativas, regulatórias, evasão e desigualdade estrutural.
O avanço da EaD é incontornável, mas vem acompanhado de dúvidas sobre a formação oferecida. Para Madalena, o novo marco regulatório da modalidade, pode ser um divisor de águas: “O novo marco regulatório, se for aplicado nos dois anos de transição para os cursos que já existiam, será um grande avanço na garantia de qualidade. Os cursos novos já deverão estar de acordo com o Marco Regulatório”, afirma Madalena.
Ela ressalta que o marco proíbe a oferta de cursos de licenciatura e áreas da saúde na modalidade EaD, autorizando os limites pedagógicos e éticos dessas formações à distância. Além disso, a exigência do Enade (Exame Nacional de Desempenho de Estudantes) anual para licenciaturas, com avaliação prática incluída, busca fortalecer a formação de futuros professores — um pilar essencial para a educação básica.
Evasão e desigualdade: o outro lado da moeda
O aumento de matrículas não se traduz automaticamente em aumento de graduados. De acordo com a análise de Madalena, a evasão permanece alta em todos os tipos de curso — bacharelados, licenciaturas e tecnológicos — especialmente entre estudantes de baixa renda e das redes públicas de ensino médio. Sem enfrentar esse gargalo, a expansão pode ser inflada por números que não se convertem em profissionais formados.
Apesar do salto quantitativo, o retrato do acesso ao ensino superior continua desigual. Apenas 33% dos concluintes do ensino médio em 2023 ingressaram em cursos superiores em 2024. A disparidade entre redes é marcante: 64% dos alunos da rede federal avançaram, contra 60% da rede privada e apenas 27% da estadual.
Essa desigualdade expõe um paradoxo: o ensino superior se expande, mas os jovens das escolas públicas estaduais — maioria do país — seguem sub-representados, revelando que a democratização é parcial. Assim, embora o sistema tenha se expandido, ele ainda reproduz as desigualdades estruturais do país.
“Hoje, temos 2.244 instituições privadas e a maioria não é universidade — portanto, não tem a obrigação da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. Isso mostra que ainda temos a missão de ampliar o acesso nas instituições públicas de educação superior”, alerta Madalena.
Regulação como caminho para a qualidade
Diante dos desafios, o Inep anunciou mudanças estruturais para os próximos anos. A partir de 2025, serão aplicados dois novos exames: o Exame Nacional de Avaliação da Formação Médica (Enamed) e a Prova Nacional Docente (PND). Juntos com o Censo da Educação Superior, formarão um “tripé” de avaliação contínua, voltados para orientar políticas públicas e regulares à expansão do setor.
Além disso, a partir de 2026, haverá avaliações anuais das condições de oferta da EaD, incluindo monitoramento presencial dos polos por amostragem — uma resposta direta às críticas sobre infraestrutura precária e falta de suporte pedagógico.
Meta não cumprida e desafio coletivo
Apesar do marco simbólico dos 10 milhões de estudantes, o Brasil não cumpriu a Meta 12 do Plano Nacional de Educação (PNE), que prevê uma taxa líquida de matrícula de 33% da população de 18 a 24 anos até 2024. O índice alcançado foi de apenas 27%. No cenário internacional, a defasagem é ainda mais gritante: enquanto 47,6% dos jovens de 25 a 34 anos nos países da OCDE têm ensino superior, no Brasil essa proporção é de apenas 23%.
O marco de 10 milhões de estudantes é uma uma expansão quantitativa histórica, mas sua sustentação depende de uma equação delicada: garantir acesso mais amplo, sem abrir mão da qualidade. Os números também expõem as contradições do modelo brasileiro: crescimento impulsionado pelo setor privado e pela EaD, acesso desigual, evasão elevada e fragilidade na formação de alto nível.
Sem políticas públicas robustas, investimento em instituições públicas e regulação eficaz da educação privada, o marco de 10 milhões de estudantes corre o risco de ser apenas um dado estatístico — e não um verdadeiro salto civilizatório. O futuro do ensino superior não será definido apenas pelo número de matrículas, mas pela capacidade de formar cidadãos e profissionais preparados, em instituições que não apenas ensinem, mas também pesquisem e dialoguem com a sociedade.
Fonte: Portal Vermelho.